quarta-feira, 30 de abril de 2008

Artigo « Quadrilhas juninas » (2001)

« Quadrilhas juninas »

in : Galante n°1, ano 3, volume II, junho 2001. Fundação Hélio Galvão, Natal.

Luciana Chianca

Professor Adjunto

Depto. de Antropologia/ UFRN

Dançar quadrilha é uma das atividades mais divertidas da festa junina, e quem já dançou e dança sabe do que é que estamos falando!

Dentre as várias danças ligadas ao ciclo de São João no Nordeste algumas são dançadas o ano todo como o forró, o côco de roda, as cirandas, e o bumba-meu-boi, mas a quadrilha se destaca de todas elas porque só é apresentada nessa época. Outro aspecto interessante é que ela se tornou uma espécie de símbolo da festa. Falar em festa junina no Nordeste e esquecer as quadrilhas é como falar em carnaval e esquecer o frevo e o samba!

“De onde vem o baião?”, perguntou Gilberto Gil, ao que ele mesmo respondeu : “vem debaixo do barro do chão”. E as quadrilhas, de onde vem?

Originária de uma contradança de mesmo nome trazida ao Brasil pela corte imperial portuguesa, ela teve suas figuras e passos modificados ao longo do tempo e dos lugares em que ia sendo executada. Ao princípio eram quatro ou oito casais que se organizavam em duas filas uma frente à outra, com as quatro extremidades formando um quadrado, daí seu nome francês « quadrilles » (em espanhol é « cuadrilhas », e em italiano é « quadriglia »).

As quadrilhas pertencem às « danças baixas » que tem esse nome porque nela os casais fazem pequenos gestos cerimoniosos com os braços e pernas e quase não levantam os pés, evitando movimentos bruscos. Nobre e cortês na origem, a quadrilha se tornou uma dança e um espetáculo popularizado e reinventado. Hoje a quadrilha marca as festas de São João de todo país, tanto no interior quanto na cidade.

As descrições dos viajantes da época do Brasil colonial apresentam as quadrilhas como danças praticadas nos salões ricos da corte tanto na cidade quanto no campo. Elas nos falam de um D. Pedro II muitíssimo apreciador de quadrilhas que ele dançava na fazenda do Barão de Muriaé ou nos bailes solenes da Câmara Municipal do Rio. No mês de agosto de 1852, numa grande festa por ocasião do encerramento dos trabalhos do Senado, Vossa Magestade teria dançado pelo menos nove das dez quadrilhas propostas.

Numa nota de um jornal paulista datada do dia 16 de fevereiro de 1860, promete-se um baile de carnaval onde um «conjunto musical tocará alegres quadrilhas». A dança já era então popularizada e conhecida dos leitores. Também percebemos por essas fontes que a quadrilha não era considerada exclusiva do período junino: nas festas acima citadas vemos que elas são dançadas em agosto e fevereiro.

A quadrilha se democratizou até se tornar hoje uma dança de todos, da cidade e do interior, dos ricos e dos menos abastados. Esse caminho pode ser compreendido se nos já sabemos que uma vez chegadas à corte do Rio de Janeiro as quadrilhas se disseminaram, entrarando nos ricos salões de Salvador, Recife e São Paulo, e isso nas suas várias versões : « quadrilha de Julien », « quadrilha de Munsard », francesa, diplomática , napolitana, de lanceiros e quadrilha scottish.

As danças dos nobres se tornam burguesas e assim se iniciou a sua popularização, que no caso da quadrilha repete um processo frequente na história e que a Europa conheceu no século XVI quando as danças palacianas restritas às cortes e à aristocracia se transformaram em « danças de salão », da alta e média burguesia.

No Brasil ocorreu o mesmo fenômeno, com o conjunto da população urbana e rural menos privilegiada reproduzindo à sua maneira a dança das classes altas. Tudo nos leva a crer que a quadrilha era a dança preferida da Corte portuguesa e conheceu um franco sucesso no período imperial. Num baile promovido na última fase da monarquia brasileira, todos os convidados dançaram valsas, mazurkas e gavottes, mas a festa alcançou o seu auge quando tocaram as primeiras batidas do ritmo anunciando a quadrilha, quando todos « em pares, alinhados nos « an avant! », nas « grandes chaînes ! », se agitando febris e saltitantes nos galopes (iam) nos zig-zags a perder o folêgo, e nos « chassés-croisés ».

Mas por que e como essa dança se tornou uma importante referência da « festa do interior » ?

O que explica esse deslocamento simbólico é o fato político e cultural da mudança de poder e de mentalidade do Brasil republicano, quando os costumes do período colonial e imperial foram desprezados pelos barões e pelas camadas burguesas urbanas e citadinas. Foi provavelmente nesse momento que a quadrilha foi abolida das festas dos ricos das cidades, mas continuou a ser dançada pela população mais distante dos grandes centros urbanos, os « interioranos », geograficamente ou simbolicamente defasados com suas danças que os novos poderosos consideravam « fora de moda ».

O que é curioso é que até hoje os dançarinos de quadrilha se fantasiam de homens do interior de uma forma pejorativa e caricatural: o citadino constrói uma imagem depreciada dos rurais, o que revoltou e continua revoltando muitas pessoas que vêem nisso um sinal de inferiorização dos homens do campo.

O que hoje conhecemos como quadrilhas tradicionais são essa versão da dansa nobre na origem, que se tornou popular, exclusiva da festa junina e associada ao mundo rural.

Neste modelo de quadrilha duas filas de casais se alinham frente a frente seguindo as ordens do animador da quadrilha (o puxador) em passos pré-estabelecidos e fazendo uma sequência de passos ensaiada antecipadamente ou não. Essas duas filas não competem entre si, mas compõem um conjunto onde as evoluções conhecem uma ordem própria e um conjunto bem harmonizado.

A música pode ser elétrica ou acústica e segue um ritmo quaternário. Para dançá-la é necessário além de música adequada, uma boa quantidade de dançarinos, bastante espaço e muita animação!

Os dançarinos das quadrilhas são todos « matutos », reunidos para um casamento na roça, onde se representa um casamento (quase) forçado de um matuto que engravidou a noiva e que tenta fugir, mesmo na presença das autoridades religiosas e da lei. O pai da noiva consegue capturá-lo nas suas tentativas desesperadas de fuga, mas os convidados se deliciam escutando o diálogo entre ele, o pai da noiva, o padre, o delegado e a noiva. É um texto bastante malicioso que mostra um pouco as tensões e conflitos em jogo nesse casamento. Mas afinal tudo termina bem, e « Viva os noivos ! ! ! ».

A quadrilha é então o baile da festa de casamento dos noivos, que são os personagens principais da quadrilha, junto com o padre e o juiz (ou policial). Ela também pode ocorrer sem um casamento matuto, mas já em 1843 foi descrita como uma das danças de uma festa de casamento.

Dançadas durante todo o período junino (que começa na véspera de Santo Antônio, passa por São João e vai até o dia de São Pedro), as quadrilhas reafirmam laços sociais importantes, como a vizinhança, a família, o trabalho ou a escola, colaborando para manutenção de redes sociais fundamentais aos grupos envolvidos. Em torno da quadrilha se organiza também uma vasta rede de especialistas: dançarinos, puxador, costureiras para as « fantasias », coreógrafos para as sequências, músicos, sonoplastas, iluminadores, etc.

Em geral, uma quadrilha se identifica a um arraial ou a uma rua, um bairro, uma escola, um local de trabalho. Seus nomes são criativos e às vezes de duplo sentido sexual, mas também há sátiras políticas e podem ter nomes do seu puxador, do bairro, da rua onde se constituíram.

Se como vimos, as quadrilhas vem sendo modificadas e reinventadas desde sua chegada ao Brasil ainda no século XIX, nós também podemos constatar que elas continuam mudando, mostrando assim que são uma tradição popular de vitalidade e vida longa !

Hoje a cidade de Natal conhece dois modelos fundamentais de quadrilhas; mas matutas que são próximas da forma mais tradicional, e as quadrilhas estilizadas. Ambas tem a base comum que é a norma da quadrilha matuta, mas a quadrilha estilizada traz muitas modificações que ela acrescenta à essa base. Nela há uma maior liberdade de coreografia e novos passos são constantemente acrescentados. Na vestimenta, as quadrilhas matutas trazem « matutos » rasgados e remendados enquanto as estilizadas apresentam «dançarinos » de roupas bem cortadas e inspiração americana.

Muita coisa poderia ser dita sobre esses dois modelos de quadrilha, mas já podemos avançar que se muitas continuam sendo dançadas somente como fonte de prazer estético e lúdico, há também competições e concursos em que elas se apresentam em categorias diferentes: « matutas » ou « estilizadas ». Esses concursos são excelentes ocasiões para percebermos como essa dança é uma importante referência da festa e se tornou um espetáculo à parte: bastante disputados, eles atraem muitos expectadores em suas várias fases eliminatórias e final.

É nessa ambivalência do tradicional e da sua atualização que a quadrilha segue sua história na cidade de Natal. Seria inútil tentar estabelecer um critério de autenticidade ou de valor para uma dança que é expontânea e tão intensamente vivida por todos… O tradicional e sua atualização encontraram seu espaço nas quadrilhas juninas em Natal mostrando que na realidade eles não são antagônicos, opostos nem inimigos. Cada modelo apresenta uma versão diferente dessa tradição, que chegou até nos como uma dança estrangeira e importada e hoje faz parte indiscutível da nossa cultura, uma dança junina « tão nossa»…

Seguindo as ordens dos puxadores (ou marcadores) que comandam os passos e as evoluções das quadrilhas, escutamos nas frias noites de junho um francês deliciosamente reinventado : anavantu! anarriê! balancê! e sangê!, e imaginamos D. Pedro II vestido de matuto num arraial da cidade, chapéu de palha, cachimbo e calça jeans remendada …

Bordeaux, abril de 2001.

Um comentário:

Cristiane disse...

Luciana, parabéns pelo texto e pela pesquisa! Muito bom!